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A origem filosófica da polêmica: Não se nasce mulher, torna-se mulher

  • Foto do escritor:  Eric Rudhiery Albuquerque
    Eric Rudhiery Albuquerque
  • 26 de jul.
  • 3 min de leitura
Simone de Beauvoir
Simone de Beauvoir

Em 2009, uma questão do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) gerou polêmica nacional ao citar a frase “não se nasce mulher, torna-se mulher”, da filósofa francesa Simone de Beauvoir. Desde então, o trecho virou bordão em discursos feministas, pautas acadêmicas e redes sociais. No entanto, poucos conhecem a origem filosófica profunda dessa afirmação que está menos ligada à política imediata e mais à ontologia, à metafísica e ao existencialismo ateu francês do século XX.


Mais do que uma frase de efeito, o pensamento de Beauvoir é resultado direto de uma revolução intelectual que mudou a forma como o ser humano passou a se enxergar no mundo, uma ruptura com a tradição filosófica ocidental que havia moldado o pensamento por mais de dois mil anos.


A base teórica de Simone de Beauvoir está enraizada no existencialismo, especialmente no pensamento de Jean-Paul Sartre e, antes dele, em Martin Heidegger.


Desde Platão até Santo Tomás de Aquino, a filosofia ocidental havia afirmado que a essência precede a existência. Isso significa que tudo tem uma natureza definida, um “o que é” anterior à sua experiência no mundo. Por exemplo: a essência de uma cadeira (sua função, seu propósito) existe antes da fabricação de qualquer cadeira específica. O mesmo raciocínio era aplicado ao ser humano com uma natureza racional, espiritual ou moral previamente definida.


Mas com Heidegger, essa ordem começou a ser questionada. Em Ser e Tempo (1927), ele propôs que o ser humano (ou Dasein, em sua linguagem técnica) é um ser que se projeta no tempo, que ainda não é o que será, e que sua existência concreta vem antes de qualquer definição essencial.

Essa ideia foi radicalizada por Sartre, que cunhou a famosa frase:

A existência precede a essência”.


Para Sartre, o ser humano não tem essência pré-definida. Ele existe primeiro, nasce, age, escolhe, e só depois constrói a si mesmo. Não há “natureza humana” dada por Deus, pela biologia ou pela cultura. O homem é livre e condenado a essa liberdade. Assim, cada pessoa é responsável por inventar sua própria essência por meio das escolhas que faz.


Companheira intelectual (e sentimental) de Sartre, Simone de Beauvoir aplicou essa lógica à condição feminina em sua obra mais famosa: O Segundo Sexo (1949). Nela, afirmou que “não se nasce mulher: torna-se mulher”.

A frase não nega o sexo biológico, mas propõe que a identidade feminina é uma construção social e histórica. Ou seja: as mulheres não seriam determinadas biologicamente a serem cuidadoras, frágeis ou maternais, essas seriam funções impostas pela cultura, religião e tradições.


A mulher, para Beauvoir, é transformada socialmente em “o segundo sexo”, a outra, a diferente, a que é definida em relação ao homem. A libertação da mulher, segundo ela, viria ao assumir sua liberdade existencial e romper com os papéis impostos.

O pensamento de Beauvoir rapidamente se tornou base para as vertentes mais influentes do feminismo moderno, especialmente nas décadas de 1960 e 1970. Sua tese filosófica serviu de fundamento para a crítica ao gênero como construção social e influenciou movimentos ligados à teoria de gênero, ao pós-estruturalismo.

Contudo, grande parte dos discursos políticos e ativistas atuais que citam Beauvoir fazem isso sem conhecer sua origem filosófica. Repetem a frase como um dogma ideológico, não como conclusão de um sistema existencialista complexo. Mesmo na esquerda, poucos conhecem Sartre, Heidegger ou a crítica à essência humana tradicional. A citação vira bordão, perde a profundidade e ganha roupagem de militância.


Na prática, a tese de Beauvoir coloca em xeque qualquer tentativa de fundamentar identidades humanas em naturezas fixas, sejam elas religiosas, biológicas ou culturais. Isso leva a consequências diretas no debate atual sobre sexo, gênero, identidade e até mesmo leis e políticas públicas.

Ao mesmo tempo, críticos argumentam que essa visão nega realidades objetivas, como as diferenças biológicas entre homens e mulheres, e abre margem para subjetivismos extremos, onde qualquer identidade pode ser "construída" independentemente da realidade.


A frase polêmica do Enem é apenas a ponta visível de um iceberg filosófico que se formou ao longo de séculos. O feminismo moderno não nasceu em protestos de rua, mas sim nos cafés de Paris, nas aulas de fenomenologia e nos livros de ontologia. Sua origem é existencial, não apenas ideológica.

Ignorar isso é empobrecer o debate. Tanto seus defensores quanto seus críticos deveriam conhecer suas raízes filosóficas antes de tratar o assunto como mera disputa cultural ou política.

Talvez, como sinal dos tempos, bordões ideológicos precisam ser revisitado à luz da filosofia clássica. Afinal, sem o retorno aos fundamentos, resta apenas o slogan vazio de rebeldes sem causa.

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